Close-up de Bruce Kirkby, esposa e dois filhos

LAÇOS DE FAMÍLIA: Bebendo po cha e meditando no mosteiro de Karsha Gompa

O som agudo de uma campainha me acordou. Meu rosto estava pressionado contra uma janela fria. Do lado de fora, picos glaciais fumegavam sob os raios solares de cor carmesim. Do andar de cima veio o som de pés se arrastando. Em seguida, cânticos.

Sentei-me lentamente, tomando cuidado para não mexer em meu saco de dormir, pois Christine e os meninos ainda dormiam. Um exemplar surrado do livro O Leopardo-das-Neves , de Peter Matthiessen, estava ao lado do meu palete, onde eu o deixara cair na noite anterior, mas eu não estava a fim de ler.

Em vez disso, eu fui atrás das contas de mala , passando suavemente as esferas polidas entre o polegar e o indicador. Em casa, eu teria hesitado ao pensar em passar o tempo dessa maneira, mas aqui a rendição veio mais facilmente.

Eu havia completado três voltas do rosário quando passos entraram na cozinha ao lado. O clique do fogão a gás foi seguido por um tilintar de panelas.

Lama Wangyal logo apareceu, entoando cânticos enquanto colocava uma garrafa térmica de chá preto doce na mesa diante de mim, e indicando que eu deveria me servir de uma xícara. Em seguida, ele desapareceu pela passagem e saiu pela porta que parecia ser de uma casa de hobbits.

Pouco tempo depois, trompas ecoaram pela encosta da montanha.

Christine soltou um gemido; ela estava exausta demais para se levantar. Taj permaneceu imóvel. Bodi, porém, rapidamente sentou-se com a coluna ereta. Eu lhe disse que estava indo investigar e, para minha surpresa, ele perguntou se podia me acompanhar.

De mãos dadas, subimos trilhas rochosas, contornando prédios caiados de branco, procurando a origem do alarido. Monges de túnicas marrons circulavam pelas trilhas ao nosso redor, alguns balançando os braços nus para se aquecer, outros curvados e murmurejantes, com as mãos entrelaçadas atrás das costas. A maioria ignorou nossa presença, mas um bando de noviços curiosos apareceu atrás de nós, sussurrando de modo entusiasmado.

Um túnel escuro conduzia ao pátio superior do mosteiro. Um poste de madeira erguia-se no centro, enfeitado com bandeiras de oração e encimado por uma cauda de iaque. Abaixo, dois monges adolescentes estavam soprando zelosamente em chifres de bronze. Mais além, erguia-se uma antiga fortaleza.

Esse era o lhakhang (“salão dos deuses”), também comumente chamado de salão de assembleia. Construído com barro, pedra e madeiras rústicas, ele contava 400 anos de existência e agora estava levemente inclinado, com as paredes e o telhado desalinhados. Como folhas de outono, um aglomerado de sandálias de plástico estava diante da entrada. Acrescentamos nossas botas de caminhada à pilha, tiramos do caminho um pesado cobertor de pelo de iaque e adentramos.

Chegamos ao interior de uma sala escura do tamanho de um ginásio escolar, onde uma série de pilares de madeira retorcida sustentava o teto baixo. Afrescos revestiam as paredes. Um mar de velas tremeluzentes à base de manteiga de iaque no altar aquecia uma gigantesca estátua dourada de Buddha.

Fila e mais fila de monges sentados em silêncio e de pernas cruzadas. Um jovem perambulava pelos corredores, balançando um incensário que soltava a fumaça azul do zimbro em chamas. Um único feixe de luz solar despontava do alto.

Sem saber o que fazer, ficamos parados ao lado da porta. Por fim, um monge mais velho nos notou e apressou-se na direção de um canto escuro, onde desenrolou um tapete e fez sinal para que nos sentássemos. Sem jeito, sentei-me com as pernas cruzadas. Bodi fez o mesmo, cravando um cotovelo pontudo na carne da minha perna enquanto se apoiava em mim.

“O que acontece depois?", ele sussurrou. Eu dei de ombros.

Sentar-se em silêncio


Ficamos sentados em silêncio enquanto monges e noviços continuavam afluindo, cada um se prostrando três vezes no corredor central antes de encontrar seu lugar. Por fim, uma única e sonora voz encheu a sala. Os outros rapidamente se juntaram a ela, com seus cantos rítmicos crescendo e retrocedendo suavemente como ondulações do oceano.

Distraído pelas dores nos joelhos, ajustei minha posição, mas só piorei a situação ao pressionar o tornozelo contra o piso duro. Não demorou muito para que um dos pés adormecesse. Endireitei minha perna e olhei para o relógio. Estávamos sentados havia apenas sete minutos?

Tirando ficar de cócoras, sentar-se com as pernas cruzadas talvez seja a forma mais atemporal de repouso. Quando eu era jovem, podia passar horas no chão, mas décadas vivendo preso a uma cadeira me deixaram mais enrijecido de uma forma que eu nunca havia percebido.

Nenhum dos lamas demonstrou qualquer desconforto ao se balançar, e eu me comprometi a, se não conseguisse mais nada durante minha estada em Karsha Gompa, pelo menos ensinar meu corpo – ou, mais precisamente, reensiná-lo — a sentar-se com as pernas cruzadas.

Bodi não estava enfrentando tais problemas. Ele se sentou serenamente com os olhos fechados, as mãos viradas para cima apoiadas nos joelhos, o polegar e o indicador se tocando, imitando a estátua de Buddha à frente. Independentemente de isso ser uma continuação do que ele aprendeu na caverna tibetana ou simplesmente outra expressão de seu conforto com todas as coisas espirituais, ele havia entrado em um reino sobre o qual eu não sabia nada.

Por muito tempo, encarei a meditação com ceticismo. Ficar sentado e não pensar em nada não parecia ser um uso produtivo do meu precioso tempo. Portanto, décadas atrás, quando minha mãe sugeriu gentilmente que a meditação poderia ajudar a acalmar minha mente ocupada, eu a ignorei.

Christine já meditava diariamente quando começamos a namorar, e eu frequentemente a encontrava sentada em posição de lótus, com os olhos fechados e uma expressão de distanciamento no rosto. Normalmente, eu me aproximava sorrateiramente e dava um leve puxão em uma orelha, o que a enfurecia. Ela também me implorou para tentar a meditação, o que fiz por um curto período. Todavia, achei impossível me concentrar em minha respiração e desisti.

Por isso, foi uma surpresa, poucas semanas antes de nossa partida, quando me deparei com uma análise de pesquisas contemporâneas que mostravam que a meditação estava tendo efeitos inesperados e de longo alcance: redução da pressão arterial, redução dos hormônios do estresse e até mesmo redução do perigoso colesterol no sangue, ao mesmo tempo em que aumentava a resposta imunológica e influenciava positivamente condições aparentemente não relacionadas, tais como compulsão alimentar, síndrome do intestino irritável, psoríase, TDAH, depressão e dependência.

Os resultados mais surpreendentes desses estudos, porém, foram os exames cerebrais, que revelaram que até mesmo curtos períodos de meditação estavam literalmente reconectando o cérebro, acrescentando considerável massa cinzenta ao mesmo tempo em que alteravam atributos que se pensava serem definidos desde o nascimento: felicidade, resiliência, bondade.

Se esses estudos diminuíram minha resistência ou se foi apenas o ar rarefeito do Himalaia, não posso dizer, mas decidi tentar novamente a meditação. Fechando suavemente os olhos, respirei fundo e tentei limpar minha mente, concentrando-me apenas na minha respiração.

A meditação é um árduo trabalho


Close-up de Bruce Kirkby, esposa e dois filhos
Toda a família Kirkby: Bodi, Christine, Bruce e Taj (à frente)

O que isso significa, “concentre-se em sua respiração”?

Em que exatamente eu deveria estar pensando?

As cócegas que o ar faz em minhas narinas?

Meu peito se movendo para cima e para baixo?

Eu não deveria estar respirando com a barriga?

Um par de meias passou na ponta dos pés. Um címbalo tiniu. Em seguida, um som de raspagem, e abri os olhos para encontrar um jovem monge varrendo os corredores. Outro rapaz estava acendendo velas.

Caramba, o que aconteceu com minha respiração? Limpando minha mente, fechei novamente os olhos e me concentrei no ar que entrava e saía de minhas narinas.

Quanto tempo durariam as baterias da minha câmera? Eu conseguiria recarregá-las em Zanskar? E o próximo programa de TV? Seria um sucesso? Mudaria nossas vidas? Haveria uma segunda temporada?

Meus pensamentos se voltaram para minha casa. Será que eu havia coletado lenha suficiente para o inverno que se aproximava? Será que eu tinha encerado meus esquis antes de guardá-los durante o verão?

Para algo que parecia tão simples, meditar era um trabalho árduo para caramba.

A luz do sol inundou a sala, e meus olhos se abriram novamente. As pesadas cortinas que cobriam a porta haviam sido jogadas para o lado, e dois meninos descalços entraram às pressas, carregando chaleiras enegrecidas pelo fogo tão pesadas que eram obrigados a equilibrar as urnas contra um quadril e a andar meio tortos. Começando pelo principal lama (que se sentava em um estrado elevado próximo ao altar), a dupla derramava chá fumegante em largas tigelas enquanto corriam para cima e para baixo dos corredores.

Um lama com sobrancelhas severas — ele poderia ter sido confundido com o político soviético Leonid Brezhnev — evadiu-se da sala. Momentos depois, o homem voltou carregando duas xícaras de chá de porcelana, entregando-as a Bodi e a mim. Os noviços acudiram, um deles enchendo a xícara de Bodi e o outro, a minha.

Infelizmente, aquele que me serviu estava tão distraído que despejou bem em cima da borda da xícara, derramando o líquido escaldante em cima da minha calça. Um sonoro “tsc” de Brezhnev fez com que os dois se apressassem em direção à porta.

Eu esperava sentir o sabor de po cha, ou chá de manteiga, uma mistura de cheiro forte comum no Tibete. Em vez disso, porém, deparei-me com um chai doce e leitoso, condimentado com cardamomo. Em poucos goles, esvaziei minha xícara. Depois de soprar meticulosamente seu próprio chá, Bodi tomou um gole e deu um joinha.

Mais cânticos se seguiram. Com dores nos joelhos e nas costas, era impossível manter o foco na minha respiração. Eu me remexia incessantemente. Por fim, Bodi sussurrou: “Já terminei de orar. Quero ir embora”. Perguntei se ele era capaz de encontrar o caminho de casa, e ele anuiu. Ele se levantou e saiu na ponta dos pés, com todos os olhos da sala o seguindo.

Logo as urnas de chá apareceram novamente e, desta vez, uma camada de manteiga derretida flutuava sobre o chá na minha xícara.

Bebendo po cha


Preparado com manteiga de iaque batida com água fervente, sal e folhas de chá, o, po cha é apreciado em todo o planalto do Tibete por sua capacidade de hidratar, repor sais, fornecer energia e até mesmo evitar rachaduras em lábios ressecados. Segundo estimativas gerais, os aldeões bebem entre 40 e 60 xícaras desse chá por dia. Eu não era muito fã e, em viagens anteriores, havia me engasgado com seu gosto de salmoura e sua gordura condensada.

Po cha

“O truque é não pensar nele como chá”, disse-me um viajante francês anos antes, em uma pousada em Siquim. “Imagine que você está bebendo um caldo. Ou uma canja de galinha com macarrão”.

Seu conselho se mostrou inútil e, durante anos, eu havia, sorrateiramente, jogado o líquido fétido por baixo das mesas e para fora de tendas — o que nunca foi uma estratégia bem-sucedida, pois os tibetanos reabastecem incansavelmente a xícara de cada hóspede.

No entanto, quando experimentei esse lote, achei-o cremoso e surpreendentemente saboroso. Terminei minha xícara e a estendi novamente quando uma segunda rodada foi servida.

Os cânticos recomeçaram, e eu tinha fechado os olhos, refletindo sobre por que o chá de manteiga de Karsha Gompa parecia tão agradável — Manteiga não rançosa? Menos sal? —, quando os lamas se levantaram em uníssono e, todos juntos, começaram a se retirar. Lutando para ficar de pé, com uma perna dormente, fui carregado pela maré de vestes cor de carmesim em direção à luz ofuscante do sol que vinha de fora.

Bruce Kirkby is a wilderness writer and adventure photographer recognized for connecting wild places with contemporary issues. With journeys spanning more than 80 countries and 30 years, Kirkby’s accomplishments include the first modern crossing of Arabia’s Empty Quarter by camel, a descent of Ethiopia’s Blue Nile Gorge by raft, a sea kayak traverse of Borneo’s northern coast and a coast-to-coast Icelandic trek. A columnist for The Globe and Mail, author of two bestselling books and winner of multiple magazine awards, Kirkby has also written for The New York Times, Outside magazine and Canadian Geographic. He makes his home in Kimberly, British Columbia.

Excerpted from Blue Sky Kingdom: An Epic Family Journey to the Heart of the Himalaya by Bruce Kirkby. Published by Pegasus Books. Reprinted with permission.

Front cover of Blue Sky Kingdom book

image 1: Bruce Kirkby; image 2: Bruce Kirkby; image 3: Wikimedia Commons